O direito à proteção de dados e à privacidade se choca novamente com a Google. A gigante da Internet recorreu à Audiência Nacional em cerca de 75 resoluções ditadas pela Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD).
Pela primeira vez nesta quarta-feira se encontrarão diante do juiz, que terá de decidir sobre a colisão de dois direitos: o direito à liberdade de expressão online, que empunha a Google, e o direito à dignidade pessoal pelo qual zela o órgão de proteção de dados. A gigante da Internet acredita que é um caso de censura.
Para a Google, o caso da Espanha é especialmente delicado devido a um possível efeito dominó do chamado direito ao esquecimento em outros países. Se a Audiência Nacional desse razão à AEPD, poderia se desencadear uma avalanche de reclamações. Por isso a matriz americana tomou as rédeas no assunto e decidiu assumir diretamente o litígio.
A AEPD tem várias disputas abertas com a Google. Uma das mais agudas se refere ao rastreamento de dados de redes "wi-fi" feita em sua passagem para montar a rede fotográfica de ruas Street View.
As cinco resoluções que a Audiência Nacional examinará amanhã se referem a dados procedentes de boletins oficiais e uma informação publicada por "El País" em 1991 que aparecia refletida em sua edição digital. São reclamações, algumas delas apresentadas há três anos, nas quais se invoca o direito de oposição e cancelamento de dados para evitar a difusão pública de dados de caráter pessoal.
Até o momento, o regulador espanhol ditou cerca de 90 resoluções nas quais solicita a retirada de links que podem infringir a proteção de dados dos cidadãos. A maioria foi recorrida pela Google.
Em todos os casos, a AEPD pede que a Google exclua de seus índices os dados refletidos no Boletim Oficial do Estado (BOE) e em diversos boletins regionais (da Catalunha, Madri ou Baleares) sobre os envolvidos. Nessa ocasião, seguindo um modelo que é reproduzido milimetricamente diversas vezes, a Google responde que não pode atender ao pedido porque as informações dos resultados de busca estão alojadas em páginas de terceiros, cujo acesso é público.
Salienta que para eliminar esses conteúdos seria necessária a colaboração dos webmasters.
Para solucionar esse obstáculo, a AEPD exigia na mesma resolução que o BOE arbitrasse as medidas necessárias "com o fim de evitar a indexação dos dados do interessado e impedir que sejam suscetíveis de captação pelas máquinas de busca da Internet".
A iniciativa do regulador da privacidade espanhol não caiu nada bem para a empresa americana. "As leis espanholas e europeias defendem que quem publica um material é responsável por seu conteúdo. Exigir que intermediários como as máquinas de buscas censurem o material publicado por outros teria um efeito paralisante para a liberdade de expressão, sem proteger a intimidade das pessoas", disse Peter Barron, diretor de relações externas da Google.
Mas a AEPD mantém uma postura bem diferente. Em suas resoluções, insiste nos "efeitos divulgadores múltiplos" que ocorrem através da Internet e sobretudo à onda expansiva das máquinas de busca. "Para muitos cidadãos causa incômodo ou prejuízo que seus dados sejam conservados em um site e possam ser recuperados pelas máquinas de busca com caráter universal", afirma Artemi Rallo, presidente da AEPD. "Seria desejável que a Google, em vez de pleitear sobre o âmbito de aplicação da lei, desse uma resposta tecnológica para garantir os direitos dos cidadãos", diz Rallo.
A Google costuma responder nas reclamações dirigidas à divisão espanhola que nem é responsável nem se encarrega da prestação do serviço de buscas na Internet. Atira a bola para a Google Inc. como única responsável. E como essa companhia opera nos EUA alega que não está sob o guarda-chuva da legislação espanhola nem da comunitária.
A AEPD rejeita qualquer tipo de censura - "é algo que não está em nosso imaginário", comenta Rallo - nas resoluções que dita. "Tentamos garantir o direito à proteção de dados e a privacidade sem censurar notícias. Mas acreditamos que os boletins oficiais têm um problema: publicam informação pessoal em excesso, isto é, desproporcional à finalidade que se busca." Rallo considera que para a notificação de diversos atos administrativos costumam-se incluir demasiadas referências (nome, sobrenome, número de identidade, endereço postal).
A agência viu casos de cidadãos que apareceram nos boletins oficiais por ter recebido uma incapacidade física, uma subvenção para um tratamento de metadona ou uma multa por fazer "águas menores" na rua 30 anos atrás. "Essas páginas da web podem aplicar regras de maior proporcionalidade e autocontrole na informação e documentação que é divulgada", aponta Rallo.
A Google considera que seu serviço depende da liberdade de expressão e que não pode restringir o acesso à máquina de buscas. Isso transformaria a rede, na sua opinião, em algo distorcido e não transparente. Por isso insiste que a web de origem é a que, no caso, deveria eliminar a informação delicada.
Direito a não resignar-se
A AEPD defende a doutrina de que nenhum cidadão que não seja um personagem público nem objeto de um fato noticiável de relevância pública tem de se resignar a suportar que seus dados pessoais circulem pela rede.
Quatro das cinco resoluções a que a Google recorreu e que serão vistas amanhã na Audiência Nacional fazem referência a informações publicadas no Boletim Oficial do Estado e em boletins de diversas comunidades. Uma delas foi interposta em abril de 2008 por um funcionário dos presídios que foi objeto de uma sanção disciplinar nos anos 90.
Como manda a lei, essa sanção foi publicada no BOE, e algo que nos tempos em que a gazeta oficial só era divulgada na versão impressa teria passado despercebido para o público se transformou em uma infração de alcance universal.
O interessado reclamou então da Google para que seus dados não aparecessem na máquina de busca e assim evitar "a difusão pública desproporcional de dados de caráter pessoal unidos a um fato de rejeição social, como é uma sanção disciplinar, assim como ao conhecimento dos mesmos por elementos do bando terrorista ETA, do qual os funcionários das Instituições Penitenciárias somos alvo".
Outra resolução corresponde à reclamação de uma mulher para que a Google apagasse a notificação de uma decisão para o cumprimento de uma sanção administrativa que foi devidamente saldada em tempo e forma. A AEPD afirmou que a lei não obriga que os dados pessoais figurem nos índices que a Google utiliza para facilitar ao usuário o acesso a determinadas páginas, nem que sejam conservadas em seu "cache".
A Audiência também escutará os argumentos sobre o caso de um cidadão que procurou a AEPD depois de comprovar que, ao digitar seu nome na máquina de buscas da Internet aparecia um artigo de "El País" datado de 1991 que prejudicava seu "bom nome pessoal e profissional" e a intimidade e confidencialidade de seus dados. A AEPD estimou a reclamação diante da Google mas não a formulada a "El País" por estar amparada no direito à liberdade de expressão.